Infelizmente, até o momento, sabe-se muito pouco sobre a covid-19. Os avanços científicos registrados foram para pacientes em UTI em que a intubação tardia, a posição prona (de bruços) e o uso de corticoides e anticoagulantes diminuíram as mortes. É assustador notar que todas as medidas de prevenção, até agora, parecem ter impacto reduzido na disseminação dessa doença.

Existem inúmeras questões que aguardam respostas da ciência em relação à covid-19. Cito algumas: o “lockdown” previne mais a transmissão do que medidas de distanciamento social? Pacientes que já contraíram a moléstia estão imunes? A mutação do vírus é mais grave do que a forma anterior?

Lamentavelmente, no Brasil, há uma politização criminosa em relação à pandemia entre apoiadores e críticos do presidente da República. Assuntos irrelevantes relacionados à covid-19 dominam o noticiário, com discussões estéreis entre pessoas sem formação acadêmico-científica na área de saúde, dando opiniões como especialistas, porém com cunho político e ideológico.

Além disso, profissionais não médicos, que se autodenominam cientistas, com imenso acesso à mídia, falam sobre tudo, inclusive temas médicos sobre os quais não têm competência para opinar —e sempre evocando a ciência, como se fossem os únicos detentores do saber, disseminando informações falsas que desinformam e desestabilizam a já insegura sociedade brasileira.

Infelizmente, a politização também atingiu sociedades de especialidades médicas e grupos ideológicos de médicos, principalmente quanto ao chamado tratamento precoce, com hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina.

Esses grupos pressionam de todas as maneiras o Conselho Federal de Medicina (CFM), em razão de sua competência legal de determinar qual tratamento farmacológico é ou não experimental no Brasil, para que recomende ou proíba o tratamento precoce.

Existem na literatura médica dezenas de trabalhos científicos mostrando benefício com o tratamento precoce com as drogas citadas acima. Outros tantos apontam que elas não possuem qualquer efeito benéfico contra a covid-19.

Em outras palavras, a ciência ainda não concluiu de maneira definitiva se existe algum benefício ou não com o uso desses fármacos.

O CFM abordou o tratamento precoce para a covid-19 no Parecer nº 4/2020 em respeito ao médico da ponta, que não tem posição política ou ideológica e exerce a profissão por vocação de servir e fazer o bem; que recebe, consulta, acolhe e trata o paciente com essa doença.

No texto, o CFM delibera que é decisão do médico assistente realizar o tratamento que julgar adequado, desde que com a concordância do paciente infectado —elucidando que não existe benefício comprovado no tratamento farmacológico dessa doença e obtendo o consentimento livre e esclarecido.

O ponto fundamental que embasa o posicionamento do CFM é o respeito absoluto à autonomia do médico na ponta de tratar, como julgar mais conveniente, seu paciente; assim como a autonomia do paciente de querer ou não ser tratado pela forma proposta pelo médico assistente.

Deve ser lembrado que a autonomia do médico e do paciente são garantias constitucionais, invioláveis, que não podem ser desrespeitadas no caso de doença sem tratamento farmacológico reconhecido —como é o caso da covid-19—, tendo respaldo na Declaração Universal dos Direitos do Homem, além do reconhecimento pelas competências legais do CFM, que permite o uso de medicações “off label” (fora da bula).

O parecer nº 4/2020 não apoia nem condena o tratamento precoce ou qualquer outro cuidado farmacológico —tampouco protocolos clínicos de sociedades de especialidades ou do Ministério da Saúde. Ele respeita a autonomia do médico e do paciente para que ambos, em comum acordo, estabeleçam qual tratamento será realizado.

Para aqueles que insistem em atacar publicamente o conselho federal, fazendo pressão para que mude este parecer, visando apoiar ou proibir o tratamento precoce, esclarecemos que essas ações políticas são inúteis —como têm sido até agora e continuarão sendo.

As posições do CFM têm como objetivo o que é melhor para a população e o respeito absoluto aos médicos na ponta — estes, sim, os verdadeiros heróis, a quem rendemos todo o nosso reconhecimento.

Referências bibliográficas:

Borba MGS, Val FFA, Sampaio VS, Alexandre MAA, Melo GC, Brito M et al. Effect of High vs Low Doses of Chloroquine Diphosphate as Adjunctive Therapy for Patients Hospitalized With Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2 (SARS-CoV-2): InfectionA Randomized Clinical Trial. JAMA Netw Open. 2020;3(4):e208857. DOI: 10.1001/jamanetworkopen.2020.8857

Boulware DR, Pullen MF, Bangdiwala AS, Pastick KA, Lofgren SM, Okafor EC et al. A Randomized Trial of Hydroxychloroquine as Postexposure Prophylaxis for Covid-19. N Engl J Med. 2020;383(6):517-25. DOI: 10.1056/NEJMoa2016638

Caly L, Druce JD, Catton MG, Jans DA, Wagstaff KM. The FDA-Approved Drug Ivermectin Inhibits the Replication of SARS-CoV-2 In Vitro. Antiviral Res.2020;178:104787. DOI: 10.1016/j.antiviral.2020.104787

Fonseca SNS, Sousa AQ, Wolkoff AG, Moreira MS, Pinto BC, Takeda CFV et al. Risk of Hospitalization for Covid-19 Outpatients Treated with Various Drug Regimens in Brazil: Comparative Analysis. Travel Med Infect Dis. Nov-Dec 2020;38. DOI: 10.1016/j.tmaid.2020.101906

Gautret P, Lagier JC, Parola P, Hoang VT, Meddeb L, Sevestre J et al. Clinical and Microbiological Effect of a Combination of Hydroxychloroquine and Azithromycin in 80 COVID-19 Patients with at Least a Six-day Follow up: An Observational Study. Travel Med Infect Dis. Mar-Apr 2020;34. DOI: 10.1016/j.tmaid.2020.101663

Guérin V, Lévy P, Thomas J-L, Lardenois T, Lacrosse P, Sarrazin E et al. Azithromycin and Hydroxychloroquine Accelerate Recovery of Outpatients with Mild/Moderate COVID-19. Asian J Med Health. 2020;18(7):45-55. DOI: 10.9734/ajmah/2020/v18i730224

Lagiera JC, Million M, Gautret P, Colson P, Cortaredona S, Giraud-Gatineau A et al. Outcomes of 3,737 COVID-19 Patients Treated with Hydroxychloroquine Azithromycin and Other Regimens in Marseille, France: A Retrospective Analysis. Travel Med Infec Dis. Jul-Aug 2020;36. DOI: 10.1016/j.tmaid.2020.101791

Ly TDA, Zanini D, Laforge V, Arlotto S, Gentil S, Mendizabal H et al. Pattern of SARS-CoV-2 Infection among Dependant Elderly Residents Living in Long-term Care Facilities in Marseille, France, March–June 2020. Int J Antimicrob Agents. 2020;56(6):106219. DOI: 10.1016/j.ijantimicag.2020.106219

Molina JM, Delaugerre C, Le Goff J, Mela-Lima B, Ponscarme D, Goldwirt L et al. No Evidence of Rapid Antiviral Clearance or Clinical Benefit with the Combination of Hydroxychloroquine and Azithromycin in Patients with Severe COVID-19 Infection. Méd Mal Infect. 2020;50(4):384. DOI: 10.1016/j.medmal.2020.03.006

Rajasingham R, Bangdiwala AS, Nicol MR, Skipper CP, Pastick KA, Axelrod ML et al. Hydroxychloroquine as Pre-exposure Prophylaxis for COVID-19 in Healthcare Workers: A Randomized Trial. Clin Infect Dis. 17 Out 2020. DOI: 10.1093/cid/ciaa1571

Rajter JC, Sherman MS, Fatteh N, Vogel F, Sacks J, Rajter JJ. Use of Ivermectin is Associated with Lower Mortality in Hospitalized Patients with Coronavirus Disease 2019: The Ivermectin in COVID Nineteen Study. Chest. 2021;159(1):85-92. DOI: 10.1016/j.chest.2020.10.009

Skipper CP, Pastick KA, Engen NW, Bangdiwala AS, Abassi M, Lofgren SM et al. Hydroxychloroquine in Nonhospitalized Adults with Early COVID-19: A Randomized Trial. Ann Intern Med. 2020;173(8):623-31. DOI: 10.7326/M20-4207

Wang M, Cao R, Zhang L, Yang X, Liu J, Xu M et al. Remdesivir and Chloroquine Effectively Inhibit the Recently Emerged Novel Coronavirus (2019-nCoV) In Vitro. Cell Res. 2020;30(3):269-71. DOI: 10.1038/s41422-020-0282-0

Yao X., Ye F, Zhang M, Cui C, Huang B, Niu P et al. In Vitro Antiviral Activity and Projection of Optimized Dosing Design of Hydroxychloroquine for the Treatment of Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2 (SARS-CoV-2). Clin Infect Dis. 2020;71(15):732-9. DOI: 10.1093/cid/ciaa237

* Presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM)

Artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, em 25 de janeiro de 2021. Acesse aqui.

Instagram Facebook
Aviso de Privacidade
Nós usamos cookies para melhorar sua experiência de navegação no portal. Ao utilizar o Portal Médico, você concorda com a política de monitoramento de cookies. Para ter mais informações sobre como isso é feito, acesse Política de cookies. Se você concorda, clique em ACEITO.