Autora: Dra. Tatiane Aguiar*

 *Cardiologista e Conselheira do CREMAM

“Erro médico: é mais comum do que você imagina” foi a matéria de capa da edição de julho de 2018 da revista Superinteressante. Não bastasse a manchete apelativa, a ilustração da capa (muito criativa, diga-se de passagem) insinuava antecipadamente o tom da reportagem: um estetoscópio, disposto em forma de uma serpente prestes a dar o bote, numa clara alusão a perigo, ressignificava símbolos que tradicionalmente são associados à saúde (estetoscópio e serpente) e à profissão médica, especificamente. Em segundo plano, a assustadora afirmação de que o erro médico “afeta um em cada dez pacientes e é a maior causa de morte no Brasil”.

A matéria, embasada em evidências devidamente referenciadas, procurava entender por que o erro médico “tornou-se um problema tão grande” e “o que pode ser feito para contê-lo”. As inevitáveis e já corriqueiras comparações com a indústria da aviação, em referência ao relatório “Errar é Humano” de 1999, do Institute of Medicine (IOM, atual Nacional Academy of Medicine – NAM), destacavam que é mais seguro utilizar o transporte aéreo do que utilizar serviços hospitalares, uma vez que cerca de 1000 mortes 1,2 por dia ocorrem neste último cenário, somente no Brasil.

Como era esperado, a divulgação destas informações gerou uma reação imediata do Conselho Federal de Medicina (CFM) que, em nota de esclarecimento publicada em seu sítio eletrônico, repudiou o tom alarmista da publicação e considerou como “inadequado o uso reiterado da expressão erro médico, visto que eventuais falhas não são exclusividade de uma ou de outra categoria profissional, mas, com frequência, são o resultado de deficiências no atendimento” .

Polêmicas à parte, falhas na assistência à saúde prestada aos usuários existem em todos os níveis do cuidado e são considerados um problema de saúde pela própria Organização Mundial de Saúde (OMS). Após o famoso relatório do IOM/NAM, cresceram o número de pesquisas que buscaram observar questões relacionadas à Segurança do Paciente, inicialmente em ambiente hospitalar, e os dados compilados foram cada vez mais assustadores: um artigo do Brish Journal of Medicine (BMJ), de 2013, apontou que o “erro médico” seria a terceira maior causa de mortalidade nos Estados Unidos naquele mesmo ano, atrás somente das doenças cardiovasculares e câncer, mesmo considerando a questão da sub-notificação .

No Brasil, os dados que apontam o “erro médico” como a primeira causa de morte no país são oriundos de um relatório recente (2016) do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), onde há a constatação que “que erros e eventos adversos relacionados à assistência são uma realidade com importantes e fundamentais repercussões nos sistemas de saúde de todo o mundo, levando a mortes, sequelas definitivas e transitórias” e que são “ainda subdimensionados para a população brasileira” .

Não há dúvidas, portanto, que falhas de assistência ocorrem. Porém seriam todas as falhas computadas nos estudos citados na reportagem decorrentes de erro médico propriamente dito? Do ponto de vista da Ética Médica, erro médico é definido como “o dano provocado no paciente pela ação ou inação do médico, no exercício da profissão, e sem a intenção de cometê-lo”, caracterizado por ação ou omissão na forma de imprudência, imperícia e negligência, correspondendo à infração ao artigo 1º do Código de Ética Médica (CEM). Com base nesta conceituação, as demais falhas de assistência estariam fora deste escopo, logo, não poderiam ser taxadas de “erro médico”.

De fato, parte da confusão sobre o termo “erro médico” parece ser decorrente da ausência de uma definição geral aplicável a todos os contextos em que é utilizado. Além disso, a própria expressão quando empregada no sendo de “de erros de assistência” tem uma origem elusiva, que pode ser remeda às publicações seminais sobre erros nas prácas de saúde, como a clássico artigo “Error in Medicine” de Lucian Leape, referência mundial sobre o tema. Neste artigo, o autor busca descrever os fatores humanos e organizacionais que contribuem para a ocorrência de erros no cuidado e nele a expressão “medical error”corresponde a todos os erros de assistência. Contudo, tal expressão frequentemente é traduzida para o português como “erro médico”, o que deixa implícito que seriam erros cometidos apenas por profissionais médicos, acepção que não corresponde aos conceitos descritos pelo autor .

Na atualidade, a área do conhecimento que estuda assuntos inerentes à segurança na assistência em saúde é a Segurança do Paciente. Por se tratar de uma área nova, cujo arcabouço teórico ainda se encontra em construção, a Segurança do Paciente possui tópicos a serem melhor delineados, inclusive do ponto de vista conceitual. De volta à expressão “erro médico”, sob a perspectiva da definição de Segurança do Paciente (redução, a um nível mínimo aceitável do risco de dano desnecessário associado ao cuidado de saúde) uma terminologia mais adequada para este conceito seria dano desnecessário ao paciente decorrente do cuidado.

Cabe ressaltar que nesta definição o paciente é colocado em destaque, como parte da visão atual de cuidado centrado no paciente, e não há qualquer referência à categoria do profissional que, ao prestar o cuidado, possa cometer dano ao paciente. Isto posto, é evidente deduzir que o dano aí referido possa ser proveniente de qualquer profissional envolvido na cadeia da assistência ao paciente, incluindo todos os membros da equipe multiprofissional e até mesmo de pessoal administrativo e gestores .

Uma luz nesta questão conceitual pode ser encontrada no documento de referência para o Programa Nacional de Segurança do Paciente, publicado pelo Ministério da Saúde (MS) e Fundação Instituto Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) em 2014. Além de definir os conceitos-chave na área de Segurança do Paciente, com base na Classificação Internacional de Segurança do Paciente da OMS, este documento determinou as ações prioritárias neste campo e as metas a serem atingidas.

Com base na taxonomia publicada e especialmente no conceito de incidente “como evento ou circunstância que poderia ter resultado, ou resultou, em dano desnecessário ao paciente”, espera-se que a expressão “incidente de segurança do paciente” possa ser difundida em substituição a “erro médico”, por ser mais acurada e abrangente e por permitir uma visão sistemática da matéria, enfatizando os processos de assistência em detrimento à culpabilização dos prestadores de cuidado.

Com isso, além da melhor sistematização dos dados obtidos dos estudos sobre incidentes de segurança do paciente, o uso da terminologia correta poderá compensar um grande equívoco conceitual, cuja conotação demeritória e pejora- va vem causando, ao longo de muitos anos, uma injusta e simplista responsabilização de uma única classe profissional frente a problema tão complexo como é a Segurança do Paciente.

 

 

1. Revista Superinteressante. Erro médico: ele é mais comum do que você pensa. Disponível em: https://super.abril.com.br/especiais/erromedico-ele-e-mais-comum-do-que-vocepensa/. Acesso em jul./2018.

2. KOHN LT, CORRIGAN JM, DONALDSON MS. To Err Is Human: building a safer health system. Washington, DC: Naonal Academy Press; 1999.  Acesso em julho, 2018.

3. Conselho Federal de Medicina. Nota de esclarecimento sobre reportagem na revista Superinteressante. Brasília: CFM, 2018. Disponível em: http://portal.cfm.org.br/index.php?option=co m_content&view=article&id=27700:2018- 06-28-13-23-51&catid=3. Acesso em jul./2018.

4. MAKARY MA, DANIEL M. Medical error—the third leading cause of death in the US. BMJ 2016;353:i2139. Disponível em: . Acesso em jul./2018.

5. COUTO RC, PEDROSA TMG, ROSA MB. Erros acontecem – Construindo um Sistema de Saúde mais seguro. Instuto de Estudos de Saúde Suplementar, Belo Horizonte, 2016. Disponível em: < hp://documents.scribd.com.s3.amazonaws.com/docs/5x5i1j985c 5jwcsp.pdf >. Acesso em jul./2018.

6. GOMES JCM, FRANÇA GV. Erro Médico. Iniciação à Bioéca. Brasília: C F M , 1 9 9 8 . Disponível em: . Acesso em jul./2018.

7. Conselho Federal de Medicina. Código de Éca Médica. Resolução CFM n º 1 9 3 1 / 2 0 0 9 . B r a sí l i a : C F M , 2 0 0 9 .Disponível em: Acesso em jul./2018.

8. MENDES W. Taxonomia em segurança do paciente. In: Segurança do paciente: conhecendo os riscos nas organizações de saúde. Rio de Janeiro, EAD/ENSP, 2014. 2. KOHN LT, CORRIGAN JM, DONALDSON MS. To Err Is Human: building a safer health system. Washington, DC: Naonal Academy Press; 1999. D i s p o n í v e l e m : . Acesso em julho, 2018. 11. BRASIL. Ministério da Saúde GM. PORTARIA Nº 529, DE 1º DE ABRIL DE 2013. Instui o Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP). B r a s í l i a : M S , 2 0 1 3 . D i s p o n í v e l e m : Acesso em jul./2018. 9. LEAPE LL. Error in Medicine. JAMA, 1994;272(23):1851-1857. D i s p o n í v e l e m : Acesso em jul./18. Referências: 6. GOMES JCM, FRANÇA GV. Erro Médico. Iniciação à Bioéca. Brasília: C F M , 1 9 9 8 . Acesso

9. LEAPE LL. Error in Medicine. JAMA, 1994;272(23):1851-1857. Acesso em jul./18

10. BRASIL. Ministério da Saúde. Documento de Referência para o Programa Nacional de Segurança do Paciente / Ministério da Saúde; Fundação Oswaldo Cruz; Agência Nacional de Vigilância Sanitária. B r a s í l i a : M S , 2 0 1 4 .  Acesso em jul./2018

11. BRASIL. Ministério da Saúde GM. PORTARIA Nº 529, DE 1º DE ABRIL DE 2013. Instui o Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP). B r a s í l i a : M S , 2 0 1 3 . Acesso em jul./2018.

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