Das tantas vezes que volto a minha querida Parintins, quase sempre a trabalho, uma, guarda lugar luminoso na minha memória. Quero dizer ao meu coração. Foi no começo dos anos 90 quando recebi o título de Cidadão Benemérito , concedido pela Câmara Municipal, iniciativa do vereador José Milagre, então presidente da Casa, sancionada pelo prefeito Raimundo Reis, meus diletos amigos desde a infância. Concedo que a amizade contou para a honraria. Mas tenho a comenda em moldura a minha sala de trabalho. Como dizia o poeta Tonzinho Saunier, “fiquei “pávulo”.

A sessão solene de outorga foi marcada para uma data que coincidia com o período em que havíamos convidado um grupo de oftalmologistas de uma ONG internacional para realizarmos um programa cirúrgico que beneficiaria inúmeras pessoas necessitadas.

Sessão aberta no rigor de praxe, deram-me a palavra. Comecei o discurso lembrando que os verdadeiros merecedores da cidadania benemérita de Parintins, seriam os nossos ancestrais, pessoas que chegaram de paragens longínquas em busca de liberdade, paz, aventura, pesquisa científica ou para educar, difundir idéias. Ajudaram a formar este povo inteligente e alegre. Gente de várias origens, italianos, libaneses, turcos, portugueses e espanhóis. Falei dos padres italianos que trouxeram a religiosidade e as artes, hoje perfis marcantes dos parintinenses; dos pastores evangélicos, que enriqueceram a catequese cristã com os valores do amor, da família, da educação, da prosperidade econômica e da organização social tupinambarana.

Recordei os judeus, entre eles os meus avós paternos e maternos, que chegaram por aqui ainda moços, na última década do século XIX fugindo das inquisições. Penosamente, deixaram na Europa e Norte da África tudo o que tinham, sobretudo os seus parentes já envelhecidos e fatigados, para nunca mais revê-los. De lembrança, trouxeram apenas a chave da casa e o almofariz de metal amarelo, símbolo sagrado do judeu Marroquino, dito sefaradita, tudo para preservar a cultura milenar que as inquisições tentaram aniquilar. Resistiram perseguidos por quase dois mil anos, desde a diáspora até encontrar a paz no verde da Amazônia. A tenacidade e a perseverança também são marcas da nossa gente.

Concluí agradecendo a generosidade dos meus conterrâneos. Não escondo que me comovi quando o Secretário da Mesa me entregou a comenda: “Caro doutor Jacob, o título que ora lhe entregamos representa o reconhecimento deste Poder e do Povo, pelos relevantes trabalhos realizados na área clínica e cirúrgica, configurando-se como o primeiro oftalmologista de Parintins”.

No mesmo instante me ocorreu que se estava cometendo um injusto equívoco. Nunca duvidei que o primeiro ortopedista de Parintins fosse o legendário Waldir Viana. Lembro-me de que vi, estou dizendo que vi, adolescente, Waldir reduzir uma fratura de clavícula do irmão caçula, com a maestria de um profissional experiente.

Naqueles tempos saudosos, pelos fins de semana, eu gostava de ir para frente da Casa Radar, loja do meu padrinho de batismo, o comerciante Elias Assayag, proprietário também do Cine Teatro Brasil, único cinema da cidade, para pedir-lhe a benção e, porque não contar, a entrada para o matinê de domingo. Eu ficava horas e horas apreciando a maneira que tinha aquele homem de negociar com perspicácia e competência, aprendizagem passada por muitas gerações de Judeus, não por vocação histórica, mas por ser o comércio, desde o feudalismo, atividade secundária e periférica dos senhores feudais.

Os judeus – cito Karl Marx – passaram a ocupar os poros da sociedade. Tantas vezes pude ver gente que entrava na loja queixando-se de vista cansada, principalmente para perto. O Comerciante simplesmente perguntava a idade do queixoso, ia lá dentro e voltava com uma caixa de papelão. Dentro dela, armações de óculos com lentes numeradas. Com o auxílio do cartão de leitura, o cliente experimentava algumas e comprava a que melhor lhe servia.
Passado o tempo, já adulto, comentei com Zezito, filho do comerciante oculista, o que eu presenciara na infância e ele me retrucou: – Você nem imagina o que uma vez eu vi.

E me contou que um torneiro mecânico sofrera um acidente e um corpo estranho metálico fixou-se no seu olho. Na córnea, uma estrutura transparente anterior do olho, comparada a mica do relógio de pulso. Atendido sem êxito num hospital, lembrou-se do curioso comerciante. Com perícia genial, Elias usou o fundo imantável de um velho alto-falante de rádio, encostou-o devagarzinho ao olho do mecânico e quando a distância criou um campo magnético, o pedacinho de metal despendeu-se do olho ferido e se fixou ao corpo do imã inventado: estava findo o ato cirúrgico. Para garantir o sucesso, prescreveu-lhe unguento de terramicina oftálmica.

Vivia essas recordações , quando ouço o meu nome completo, em voz alta. Chamavam-me para a entrega da honraria. Recebi o diploma, a sessão foi encerrada. Não tive jeito, aquela altura, de quebrar o protocolo da Casa e retificar, de público: o primeiro oftalmologista de Parintins, não era eu, nem mesmo como cirurgião. Era Elias Assayag. Eu sou o segundo. Mas entrego a verdade nesta crônica, que dedico aos Assayag, Zezito in memoriam e Simão, grandes filhos de Parintins e meus irmãos.

 

Dr. Jacob Cohen – Médico Oftalmologista, CRM-AM 611, RQE N°54,  vice-reitor da UFAM e conselheiro do CREMAM.

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