Dr. Jacob Cohen – médico oftalmologista e conselheiro do CREMAM.

O médico do interior é uma figura dúbia para a população. A maioria das vezes, é homenageado e distinguido por trabalhos meritórios, como procedimentos cirúrgicos bem sucedidos ou tratamento clínico que deu certo. Outras, é execrado quando não consegue satisfazer os anseios da comunidade. Eu convivi durante quarenta anos no interior da Amazônia, ouvi muitas histórias. O médico do interior da Amazônia é quase sempre contratado para trabalhar, por escolha pessoal do prefeito que, muitas vezes, o vê como futuro adversário político.

Mal remunerado e sem tempo para se reciclar, declina das suas atualizações por não poder ir a congressos médicos, ou adquirir periódicos da sua especialidade. Sem essas condições e sem um plano de cargos e salários propostos pelo poder público, aos moldes do poder judiciário, na maioria das vezes, ele deriva para outras atividades, aí acaba se desatualizando,  já que a medicina praticada há trinta anos não é a mesma praticada hoje, seja na clínica ou cirurgia.

Vivenciei e protagonizei muitas histórias. Como estas que passo a narrar:

Havia um médico cirurgião muito conceituado numa cidade do interior do Amazonas. Corria boato que ele teria sido flagrado num lupanar, dirigindo a única ambulância existente no local. Rapidamente a notícia se espalhou por toda a comunidade. O prefeito, orgulhoso do recente procedimento cirúrgico realizado pelo médico, não deu muita atenção para o ocorrido. O fato é que o médico salvou a vida de um homem que levou uma facada. O paciente chegou ao hospital ainda com a faca cravada em seu peito. Ele era, ao mesmo tempo, cirurgião e anestesista, percebeu que a ponta da faca estava fixa a ponta do coração do paciente, pelo movimento pendular que fazia a arma.

Anestesiou o paciente, realizou uma toracotomia. Com conhecimento anatômico muito apurado, pois foi monitor da matéria, quando estudante de medicina, realizou uma pré-sutura no local lesado e ato contínuo, removeu o corpo estranho. Como previu, começou a sangrar, rapidamente, completou a sutura cardíaca e fez estancar o sangramento. Posteriormente, fechou o tórax com os cuidados que o caso exigia. Assim salvou o paciente.

O prefeito, a princípio, não deu muita bola para a denúncia. Mas, pressionado pelo padre e delegado da cidade, resolveu denunciar o médico que foi chamado a Manaus para uma reunião com o secretário de Estado da saúde, a época, um colega de turma seu. Já reunidos, o secretário falou a ele: “- Doutor que história é essa que você é, costumeiramente, encontrado junto com a ambulância num lupanar da cidade!” Ele respondeu:“ – Secretário, eu pensei:  sou o único médico da cidade e só existe uma ambulância. Sou um homem solteiro, logo, se a ambulância está parada em um lugar, o médico também deve estar e, assim, fica fácil de me encontrarem!” Pouco ético, mas muito prático, seus  argumentos foram logo aceitos. Sem celulares ou até mesmo, sem telefone fixo na cidade, ficava fácil o modo de o único médico da cidade ser encontrado, no caso de uma urgência. Assim, o caso foi solucionado.

Eu mesmo já tive sucessos e decepções por parte de pessoas ou comunidades do interior. Nas minhas andanças, há muitos anos, examinei uma menina de aproximadamente dez anos de idade com visão subnormal em ambos os olhos, quase cega, em consequência de complicações do sarampo, contraído aos sete anos de idade. Era de família muito humilde. Moravam no interior de Parintins. A mãe, aos prantos, recorreu a mim, porque a disseram que eu poderia fazer uma cirurgia e recuperar a visão da menina. Após o exame, certifiquei-me que o caso poderia ser resolvido com um transplante e córnea.

Naquela época, não havia banco de olhos no Amazonas e as poucas córneas que dispúnhamos, vinham do exterior, através de um convênio com bancos de olhos mantidos pelo Clube de Serviços – Lins Club. Confesso que fiquei sensibilizado com o caso, mas pouco podia fazer naquele momento. Retornei a Manaus e em muito pouco tempo, por coincidência, recebi notícia de um amigo que teria perdido sua prima num recente acidente de trânsito e era desejo da vítima, doar seus órgãos.

Constrangido por ter que fazer a remoção do órgão de uma pessoa conhecida, mas por outro lado, animado pela possibilidade de recuperar a visão de uma jovem, fui imediatamente ao hospital onde se encontrava o corpo da vítima, acompanhado por um residente do segundo ano e fizemos a remoção das córneas, mantendo-as em conservação – era o meio de conservação  mais usado antes de ser transplantada, no máximo, após três dias. Peguei o primeiro avião de carreira. E no outro dia toda equipe já estava em Parintins, pronta para realizar o primeiro transplante de córnea da cidade.

Assim, após a cirurgia, a menina começou a recobrar a visão. Sucesso total! Após algum tempo, a Câmara de Parintins outorgou-me o título – Mérito Legislativo,  pelos relevantes serviços prestados a população. Não nego, fiquei lisonjeado!  Durante a outorga, falaram algumas pessoas, mas uma, nunca  esqueci, porque foi diferente de todas – justamente a mãe da menina que recobrou a visão depois da cirurgia. Lembro o que ela falou na sua humildade:  “– Eu sempre pedi a Deus que curasse minha filha. Sempre acreditei em milagres e, olhem, ele aconteceu!  Minha filha está curada! Obrigado doutor.” Outro amigo usou da palavra e acrescentou: “– O doutor é o único santo de casa que faz milagres e esse santo é judeu!” Todos caíram na gargalhada. Até hoje tenho orgulho de ser escolhido entre outros colegas para assistir a população da minha Terra.

Como não podia deixar de ser, a repercussão do caso ganhou publicidade na imprensa da capital. Tempos mais tarde, recebi uma comunicação do Setor de Transplantes do Ministério da Saúde me repreendendo por ter realizado transplante de córnea em um hospital do interior, não credenciado para procedimentos de alta complexidade. Respondi  que, apesar do hospital ser de média complexidade, havia levado todo o material do Instituto de Oftalmologia de Manaus – IOM, centro de referência para  TX de córnea,  assim como pessoal técnico como  o médico residente  e instrumentadora. E que realizei todos os exames de biossegurança para considerar a córnea adequada ao transplante. Mesmo assim, suspenderam-me por tempo indeterminado para realizar Transplante de Córnea – TX. Expliquei a eles que faria tudo de novo por uma causa como aquela: “- Os senhores nunca vieram in loco para conhecer a qualidade da saúde púbica  do interior! Sentados em confortáveis poltronas em Brasília abusam da burocracia!” Passado alguns meses, perceberam que a única equipe que realizava TX no Amazonas era a nossa! Tiveram que reverter a suspensão!

Recentemente, em março passado, realizamos um projeto cirúrgico de oftalmologia nos municípios de Urucará e Parintins, onde foram beneficiados com cirurgias de catarata e pterígio,  algumas centenas de pessoas, tal qual fazemos todos os anos, nas diversas regiões do Estado. Após o Projeto, retornei a Manaus e, dois dias depois, fui a São Paulo,  a um Congresso da Especialidade. Ao retornar, no dia 15 de março, tive alguns sintomas gripais e resolvi fazer, no dia seguinte,  teste PCR para detecção do Coronavírus.  Um dia depois, veio o resultado positivo para Covid-19 – positivo fraco – disse o técnico. Imediatamente,  comuniquei ao presidente da Comissão de Enfrentamento da Covid-19 da UFAM. Como notícia  ruim se espalha rapidamente, recebi muitos telefonemas e, dentro do possível, tentei explicar.

Não demorou   para  começarem os xingamentos de todos os lados. Alguns Blogs do interior me xingaram  de tudo o que não presta, desde velho assassino, irresponsável.  Indagavam, como ficariam as pessoas operadas ir-responsavelmente por minha mim. Pessoas que estiveram comigo há dias, ligavam-me travestidas de quererem saber da minha saúde, mas queriam  mesmo saber se elas poderiam contrair a doença. Foram tantos os  insultos que recebi –  alguns, cheguei a ”printar” dos blogs. A família da minha esposa, em Parintins, sofreu discriminação, até por chegar perto de  outras pessoas.

Senti-me tão humilhado com grosserias de pessoas que considerava amigas,  que me lembrei da situação dos hansenianos na Idade Média, disse a um blogueiro. Eles eram o “bode expiatório”  por tudo que acontecia de ruim. Passavam por maus-tratos, xingamentos, alguns eram até jogados em fogueiras. Tive essa sensação, mas perdoei as pessoas que me trataram mal. Um dia, vou retribuí-las com o bem, porque elas representam a minoria de uma cidade que aprendi a amar, por tudo de bom que lá vivi. No  final, tenho a impressão que nunca fui contaminado com a Covid-19, porque todos os outros exames posteriores deram negativo e, mais,  neste  último projeto  não operei ninguém e nem fiz nenhum pós-operatório.  O médico do interior é assim, sem muito apoio – é um santo ou um demônio! Fiz questão de fazer esta crônica em homenagem aos colegas que perderam a vida no front do enfrentamento ao Covid-19, principalmente os colegas do interior que perderam a vida lutando! Como heróis!

 

Toracotomia – abertura cirúrgica do  tórax
Pré-sutura  -sutura prévia
Complicações do sarampo – opacificação da córnea
Texte PCR – teste com swuab para detectar o coronavirus
Bode expiatório – pagar pela culpa dos outros

 

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